piso paraíso

morar num shopping desde recém-nascida, parece fácil para você? minha mãe, displicente, deslizava o carrinho nas suas muitas horas vagas. às vezes, me emprestava aos passantes para poder observar melhor as vitrines. percebeu o sucesso da empreitada, e transformou aquilo num serviço. por trinta reais a hora, os pais de aluguel podiam escolher entre três ou quatro modelos de roupinha e me levar, personalizada, para passear. um acordo com os seguranças deixava minha mãe tranqüila, se alguém tentasse me raptar, eles interviriam.

por um tempo, foi o paraíso para nós. dinheiro a rodo, e a cada nova hora, eu era a filha mais querida, alguém realmente especial, enquanto ela se libertava de um fardo, dedicando-se exclusivamente aos seus objetos de desejo. caminhava lentamente pelo chão espelhado das alamedas, com uma tal suavidade que os saltos dos sapatos pareciam feitos de espuma. quando, por acaso, nos encontrávamos nos corredores, eu fingia que não a conhecia, enquanto o cantinho dos meus olhos tentava registrar aquela imagem. "mamãe, você é linda” foi uma das primeiras coisas que pude dizer.

mas logo notou com pesar que meu carrinho começava a ficar muito tempo estacionado. elaborou um questionário e o aplicou aos poucos clientes que ainda voltavam. ela simplesmente não para quieta. constantemente a menina pede coisas, ficou impossível depois que começou a falar. segundo os clientes, ainda, era sobretudo desagradável a minha mania em ficar apontando roupas, jóias, sapatos de grife e choramingar...quando tentavam me acalmar comprando um artigo semelhante em alguma grande magazine, eu ficava possessa, repetindo "quero um original, um original, este não presta".


mamãe era uma mulher inteligente, determinada em conseguir para nós o que havia de melhor. ela não havia nascido em um buraco, uma rua cheia de lama e crianças descalças, e chegado ali, conseguindo com seus próprios meios que morássemos em um dos shoppings mais elegantes da cidade? certamente, pensaria em algo para sairmos da crise.

insinuando-se sutilmente para o gerente da loja de móveis, ela o convenceu de que o grande diferencial de sua marca seria ter uma vitrine viva. nós viveríamos no quarto infantil - decorado pelo mais badalado arquiteto de interiores da temporada - mostrando as necessidades reais de uma família contemporânea. à noite, com as luzes dos corredores apagadas, mamãe se transformava. tirava o chemisier casual de mulher atarefada e vestia alguma lingerie comprada pelo gerente. os dois subiam para o andar superior, e me proibiam de deixar a vitrine. algum comprador pode estar atrasado e só chegar agora. ele vai precisar saber se essa cama seria confortável para a filhinha dele, então, finja que está dormindo como um anjo. a cama era de fato deslumbrante, com um dossel torneado e lençóis de algodão egípcio. mas, sozinha ali, os manequins do outro lado da alameda me assombravam. corpos esqueléticos e coloridos sem cabeça em torno de uma boneca pálida, com uma peruca preta um pouco desgrenhada. bobagem, querida, é apenas plástico. o estilo é vamp chique, última moda na europa. um pouco de excesso, eu concordo, é por isso que você se impressiona. talvez, mas algo de etéreo no olhar da boneca lhe dava uma certa imponência. também o vestido longo, com trapos  pendendo... ao contrário de outros manequins, ela não estava ali para agradar. são andrajos, querida, apresentados de forma conceitual, o estilista não quer vender, só chamar a atenção para a sua nova coleção.  

depois que passou a ler os coffee table books espalhados pela movelar, minha mãe sofisticou sua fala e criou para si um universo edificado sobre aqueles livros. ela buscava na praça de alimentação correlatos para os pratos da cozinha mediterrânea, tentava me vestir como a nobreza contemporânea de espanha e conseguiu uns vasos para nossa vitrine com folhagens iguais às dos jardins urbanos privados. ocupada com a obra realmente exemplar de transformar a nossa realidade, ela cometeu uma falha grave. não percebeu que o seu mundo não era partilhado por outros. presa ali, naquela vitrine, nutrida exclusivamente pelas calorias da fast-food, eu não tinha nada mais de uma menina adorável que motiva os clientes a projetarem nela um modelo ideal para suas filhas e, portanto, de hamsters a ratas, fomos demitidas. o gerente, solidário, nos ofereceu hospedagem em sua casa, mas minha mãe, orgulhosa, recusou. o shopping, e nenhum outro lugar, seria sua morada. lá ela construiu cuidadosamente sua identidade, e não iria desistir de tudo assim.

ficou aborrecida quando eu insisti que nosso destino estava ligado ao fato da boneca descabelada ter sido retirada da vitrine do jovem estilista. não diga bobagens, as vitrines mudam a cada estação, e nós nos mantivemos aqui por anos. ”pode ser, mas era tão estranha... vamos tentar saber onde está? quero vê-la de novo.” ela já não me ouvia, em direção à cafeteria, com uma nota de cinco reais estendida para comprar seu capuccino. “mãe, para onde vão as coisas velhas do shopping?”. abatida, sentou-se na mesinha que ficava na alameda d, piso paraíso. soprando a xícara, seu rosto se enevoava. talvez mamãe um dia sumisse, ou mesmo, nunca tivesse existido.

pensar assim me deu coragem para, pela primeira vez, agir por conta própria. sem dizer nada, me dirigi a um lugar que até hoje havia sido proibido.em um corredor que saía da alameda principal, havia uma porta pesada, cinza. eu a empurrei e, ao atravessá-la...é difícil contar sobre o que senti, o que vi. os cheiros, a iluminação, a temperatura eram estranhos, machucavam minhas narinas, meus olhos. estava atordoada, mas instintivamente sabia que eu precisava me esconder antes de ser vista por alguém. ali, iam e vinham pessoas estranhas, carregando caixas, sinalizando para pequenos veículos que içavam baús, pacotes. quase todas usavam botas e macacões folgados. outras, uma espécie de uniforme escuro.

espremida entre duas colunas, pude ver bem o rosto de dois homens que se aproximaram, recolhendo lixo do chão. falavam alto, rindo muito, eu não consegui entender bem o que diziam. mas vi uma coisa impressionante – do canto da testa de um deles, escorria um líquido, como se ele fosse um enorme gelo derretendo. mas o que mais me assustou foi sua boca, aberta, mostrando apenas dois dentes. nunca vi gente daquela espécie, nunca estive em um lugar tão escuro e úmido.

tive medo de nunca mais ver mamãe, de que aquela mulher elegante, vivendo sempre em um ambiente climatizado, fosse apenas um sonho. minhas pernas amoleceram, meu coração disparou, o calor era insuportável, tanto, que me surpreendi também vertendo água como o homem desdentado. gorda, foi o que o gerente disse, sua filha está gorda, tem uns olhos esbugalhados, certamente não puxou a você. minha mãe tentou parecer indignada, mas pude perceber sua respiração cortada se transformar em um suspiro de alívio.

talvez eu não fosse realmente sua filha, talvez ela tenha me encontrado aqui, onde estou agora. isto esclareceria o porquê dela conhecer o que havia por detrás da porta, e porque tentar me manter afastada deste lugar. solvendo enigmas, assim, repentinamente fiquei calma e, como um autômato, comecei a subir uma pequena escada de ferro. eu era movida pela certeza de que lá em cima alguém me esperava: aquela que havia me dado uma chave para este universo, aquela que talvez fosse minha verdadeira mãe e que se tornou minha primeira boneca.

Curiosa claridade essa, a das Salamandras

ana rüsche
trecho inicial do rascunho, 11.11.09, 22h


Ando com travas. Finjo desembalar o barro como um deus, mas é falso.
Não possuo mais paciência dos que não têm nada a esperar. A massa era das boas,
terracota, usaria o torno. Não era exatamente uma idéia de vaso, era um oco, uma
forma primária, involuída, faltava essa generosidade como a terra, mas segurava
firme o delicado entre minhas mãos. A tarde segue quente. Cada vez mais rápida ia
se estendendo a massa, se expandindo e retraindo, espasmos minúsculos, guelras,
constelações, supernovas, estrelas cadentes, risque um desejo.
Muito mais tempo depois, ou talvez menos que isso, por pura
curiosidade, espiei ali dentro, naquele oco irreconhecível. Passava algo de incomum
– antevia os futuros com as mãos, bebês tão lindos, mares e algum sangue. Os traços
na superfície nunca eram mais estáticos, com a luz se refaziam, se moviam, se
delineavam abauladas. Era tudo muito estranho. Sonhava.
Senti um enjôo de algo horrível e não resisti: gritei meu mais profundo
segredo ali dentro.
O gargalo era estreito e conteve o grito. Mas, por um centésimo, a mão
me traiu, o vaso deslizou e espatifou-se na queda dura em mil pedaços. Agora minha
casa explodia meu grito, meu mais profundo segredo liberto esmigalhava-se pelas
paredes, retumbava e uivava, centelhas de terra moldadas, estrelas cadentes
pinicantes, eu tentava tapar as orelhas e não podia, não conseguia, me penetrava, me
penetrava. Durante tempos infindos, me debati pela cama, rasguei as pontas dos
lençóis frios, um animal a procura de ar, de água, uma pele macilenta, gelada. O uivo
perpassava meu choro, uma convulsão e enxergava tudo, tão claro, tão terrível.
Depois, veio um silêncio.