Curiosa claridade essa, a das Salamandras

ana rüsche
trecho inicial do rascunho, 11.11.09, 22h


Ando com travas. Finjo desembalar o barro como um deus, mas é falso.
Não possuo mais paciência dos que não têm nada a esperar. A massa era das boas,
terracota, usaria o torno. Não era exatamente uma idéia de vaso, era um oco, uma
forma primária, involuída, faltava essa generosidade como a terra, mas segurava
firme o delicado entre minhas mãos. A tarde segue quente. Cada vez mais rápida ia
se estendendo a massa, se expandindo e retraindo, espasmos minúsculos, guelras,
constelações, supernovas, estrelas cadentes, risque um desejo.
Muito mais tempo depois, ou talvez menos que isso, por pura
curiosidade, espiei ali dentro, naquele oco irreconhecível. Passava algo de incomum
– antevia os futuros com as mãos, bebês tão lindos, mares e algum sangue. Os traços
na superfície nunca eram mais estáticos, com a luz se refaziam, se moviam, se
delineavam abauladas. Era tudo muito estranho. Sonhava.
Senti um enjôo de algo horrível e não resisti: gritei meu mais profundo
segredo ali dentro.
O gargalo era estreito e conteve o grito. Mas, por um centésimo, a mão
me traiu, o vaso deslizou e espatifou-se na queda dura em mil pedaços. Agora minha
casa explodia meu grito, meu mais profundo segredo liberto esmigalhava-se pelas
paredes, retumbava e uivava, centelhas de terra moldadas, estrelas cadentes
pinicantes, eu tentava tapar as orelhas e não podia, não conseguia, me penetrava, me
penetrava. Durante tempos infindos, me debati pela cama, rasguei as pontas dos
lençóis frios, um animal a procura de ar, de água, uma pele macilenta, gelada. O uivo
perpassava meu choro, uma convulsão e enxergava tudo, tão claro, tão terrível.
Depois, veio um silêncio.

Um comentário:

  1. Ana, pela terceira vez começo meu comentário, por isso estou cada vez mais sucinta...

    É difícil dar ao texto em progresso de um conhecido a autoridade devida, ficamos esperando que o autor molde o trabalho de acordo com nossas expectativas. Tentando interromper essa vontade de me intrometer, observo que gostei bastante do texto.

    Acho que, se comparado com Acordados, o conto mostra uma evolução na sua narrativa. A intensidade aqui é maior – parece que você está mais “dona da sua mão”, que o que você quer escrever e o que escreve de fato coincidem. Ainda há um estilo deslizante, um pouco caótico – talvez seja a sua própria “voz” como autora – mas aqui você não se furta de mergulhar mais intensamente em alguns temas. É interessante como há conflito entre a afirmação e a problematização de alguns “temas femininos” (as imagens aquáticas, barrentas afirmam uma coisa que o desconhecimento do próprio corpo da narradora nega)...

    Como leitora, o último parágrafo (ausente neste trecho) me parece conclusivo, ou seja, não fiquei esperando por um final além deste q vc já apresentou...Tecnicamente, penso q talvez apenas tirar uma ou duas palavras a cada parágrafo, fazer uma pequena limpeza, pudesse organizar a leitura e aumentar a intensidade dessa experiência.

    (Andréa)

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